O filme Fala Sério! por Francisca Rodrigues Pini, diretora pedagógica do Instituto Paulo Freire


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Filme Fala Sério

Diretor Augusto Seva

 

O filme do diretor Augusto Seva nos provoca em várias dimensões. Vou refletir sobre duas delas: a gravidez na adolescência e a relação de gênero como expressões marcantes no filme.

No Brasil, a gravidez na adolescência[1] se tornou um problema de saúde pública, mais precisamente na última década do século XX. Este problema tem afetado de maneira mais intensa as meninas das classes populares, uma vez que ao ficarem grávidas elas se distanciam ou até mesmo abandonam a escola e assumem precocemente uma vida de adulta, tendo que trabalhar para garantir o sustento da criança e cuidar da casa. É importante considerar que para elas a gravidez na adolescência pode ser o reconhecimento do ingresso na vida adulta. Muitas vezes, a maioria delas não vê a continuidade dos estudos como uma perspectiva de construção de projeto de vida para o ingresso no mundo do trabalho. Ser mãe acaba tornando-se a realização do projeto de vida possível. A entrada no mundo do trabalho mostra-se extremamente cruel, pois as adolescentes acabam sendo rejeitadas pela falta de qualificação profissional, baixa escolaridade, classe social de origem popular e por serem brasileiras afrodescendentes.

A educação de meninos e meninas ainda atribui função social distinta ao gênero homem e mulher, o que não favorece a construção de relações horizontais e de reciprocidade. No caso da adolescência variavelmente há um problema extremamente angustiante, que é a reprodução da violência do homem em relação à mulher. O contexto machista das famílias contribui com a reprodução de uma educação conservadora, que reserva à mulher as tarefas domésticas e o cuidado e ao homem o domínio  da casa. Desempenhar o papel de mãe, muitas vezes, pode ser para as adolescentes uma tentativa de fugir desta condição de opressão. Assim, a gravidez nem sempre tem em sua origem a falta de informações ou de acesso a meios contraceptivos, mas, sim, outros aspectos relacionados ao contexto cultural de nossa sociedade, como o machismo, o racismo e tantas outras formas de violência contra a criança e o adolescente. Colocar sobre os ombros da e do adolescente a responsabilidade pela situação, exigindo dela e dele que evitem a gravidez, seria revitimizá-los pela situação de violência que vivenciam cotidianamente.

Por isso, a gravidez na adolescência é um problema de saúde pública, em que estado, família e sociedade precisam construir estratégias educativas para as adolescentes, de modo particular paras aquelas das classes populares.

No filme fica evidenciado que o sonho do “príncipe encantado” se transforma em angústia quando a gravidez acontece com as três personagens, Lê, Daia e Monica. Não houve projeto de ser mãe, mas a falta de educação e orientação sexual.

A revolução sexual conquistada nas décadas de 1960 e 1970 ampliou os horizontes das mulheres para ocupar novos espaços da vida pública, mas nas camadas populares, e em algumas regiões do país, este horizonte se reduz por falta de possibilidades concretas de acessar a riqueza socialmente produzida e os conhecimentos construídos pela humanidade.

As personagens Lê, Daia e Monica assumem seus filhos e ao mesmo tempo querem viver o tempo da adolescência, com todas as particularidades inerentes a faixa etária. Este conflito se acentua quando se deparam com companheiros que não compartilham as novas responsabilidades: projetos em comum de um casal como o de educar um filho, cuidar de uma casa e trabalhar para tentar assegurar a sobrevivência da família.

O filme pontua a relação entre os gêneros como um traço forte da cultura brasileira, mostrando que os meninos são para o mundo externo e as meninas para o mundo interno (lar). Esta produção e reprodução das relações desiguais entre os gêneros revelam traços das condições de desigualdade social e econômica que se mantêm pela própria formação histórica e sociocultural do Brasil.

Um dos caminhos para enfrentar esta problemática se dá por meio da educação em direitos humanos. No Brasil, desde 2006, existe o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, com diretrizes para as seguintes áreas: I – educação básica; II – educação superior; III – educação não formal; IV – educação dos profissionais dos sistemas de justiça e segurança; V – educação e mídia. A mudança cultural é a maior barreira a ser enfrentada e, por isso, todos os espaços da vida social precisam se reeducar para a construção de um outro ethos.

 

 

Francisca Rodrigues Pini

Assistente social, mestre e doutora em Políticas Sociais e Movimentos Sociais pela PUC/SP. Filiada à ANDHEP, sócia-fundadora do CEDHECA Paulo Freire, integrante do Comitê Estadual dos Direitos Humanos de São Paulo e diretora pedagógica do Instituto Paulo Freire.



[1] Relatório de Fundo da População das Nações Unidas (UNFPA) registra que de acordo com dados oficiais:

- 26,8% da população sexualmente ativa (15-64 anos) iniciou sua vida sexual antes dos 15 anos no Brasil (MS/PCAP 2008);

- Cerca de 19,3% das crianças nascidas vivas em 2010 no Brasil são filhos e filhas de mulheres de 19 anos ou menos ( MS/Sinasc. Ver: Brasil/MS, 2012. Saúde Brasil 2011: uma análise da situação de saúde e a vigilância da saúde da mulher. Brasília: MS/SVS);

- Em 2009, 2,8% das adolescentes de 12 a 17 anos possuíam 1 filho ou mais (MS/Sinasc. Ver: UNICEF, 2011. Situação da Adolescência Brasileira 2011. O direito de ser adolescente: Oportunidade para reduzir vulnerabilidades e superar desigualdades. Brasília: UNICEF);

- Em 2010, 12% das adolescentes de 15 a 19 anos possuíam pelo menos um filho (em 2000, o índice para essa faixa etária era de 15%) (CEPAL. Ver: Observatório de Igualdade de Gênero da América Latina e o Caribe, 2012. Informe Anual. Santiago do Chile: CEPAL).

Disponível em http://www.unfpa.org.br/Arquivos/Gravidez%20Adolescente%20no%20Brasil.pdf. Acesso em 23/01/2015.

 

 

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